terça-feira, 23 de novembro de 2010

Dez porcento.

Isso se tornou algo tão comum, que eu não consigo mais lutar contra. Não quero mais mudar. Mudar de país, de estado, de casa, de bairro, de você. Não sinto a mínima vontade e não faço o menor esforço para tornar tudo diferente. Simplesmente porque não faz sentido mais tentar vencer isso. Prometi que não escreveria mais sobre você, só que não consigo. Você está em todo lugar. Nas músicas, nas séries, nos filmes, em mim. E eu tentei, juro que tentei, por dias me livrar dessa parte que você ocupa. Desse espaço que é só seu, e ninguém mais consegue tomar conta. E quanto mais eu tento, menos esforço eu faço. Então eu penso: "Ah, tudo bem, deixa estar então. Fica aí". E eu sei, sei que isso vai me corroer por dentro. Até o dia que sendimentar meus ossos. Mas, não sinto a menor vontade de mover um dedo, um músculo, nada. Suponho que sem essa parte tua que me habita, seria pior, pelo simples fato de eu não conseguir mais me recordar como era antes de você chegar. Antes de conseguir, sem eu mesma perceber, se estabilizar no meu coração. Atualmente só te pertence dez porcento dele. Os outros noventa porcento você destruiu. Sem querer, mas destruiu.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A mulher do espelho.

A casa continua a mesma. A mobília empoeirada e incólume, no mesmo lugar onde você a deixou assim que saiu. O café sob a mesa, forte e adocicado, do jeito que você gosta. Eu sentada em frente à penteadeira, desembaraçando meus fios enquanto observo a figura de uma arcaica mulher, tênue, com aparência moribunda. O olhar dela parece prescrutar o quarto, à procura de qualquer lembrança implícita sua. Qualquer frugal pedaço de você, que esteja perdido por aqui. Nos discos de vinil que você costumava ouvir, sentado na poltrona da sala em uma tranquila tarde de primavera; nas fardas tão bem engomadas que você costumava usar com arroubo, deixando transparecer toda sua elegância assim que as vestia; no seu lugar na cama, que continua desfeito desde o dia que partiu. A mulher do espelho não parece muito bem. Está abatida e magra. Com aparência doentia. O seu olhar é tão intenso, que posso ver através dele a dor que o seu coração lhe faz sentir assim que bombeia sangue para seu corpo. Machuca bastante, tanto que ela coloca a mão em cima do local, em uma inútil tentativa de fazer cessar. A casa em silêncio, só o barulho descompassado do coração da mulher. No quarto ao lado, jaz a figura pequena de uma criança deitada na cama, com a pele de um tom acinzentado claro. Os olhos fechados com a aparência serena, como se estivesse em um longo sono sem fim. Parecia uma antiga boneca de porcelana. A figura da mulher no espelho cravara as unhas sob a pele, sentindo as lágrimas descerem intermináveis pelo seu rosto. E ao observar meus braços, notei que arranhões atingiam o meu âmago. Meu rosto molhado me impedia de encará-la perfeitamente. Ela parecia cansada de esperá-lo. Esperá-lo voltar de uma guerra que não tinha data para acabar. Assim como a petiz, adormecida em um sono perene no quarto ao lado, cansou. Senti meus pulmões se comprimindo, enquanto a figura do espelho sumia. Oh, não, volte aqui. Faça-me companhia! Não vá... E com o corpo cansado e a alma dilapidada, eu aceitei o que quer que fosse acontecer comigo, encarando minhas mãos com tons de vermelho. Não havia mais motivos para continuar. Nem a petiz, nem você, e nem a mulher do espelho.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Carmélia.

Seus traços eram tão bem feitos, que pareciam ter sido moldados a mão por algum ser celestial. Movimentava-se sorrateira como um réptil. Uma cobra com passos lentos e certeiros, tão leves como passos de valsa. Seu olhar compenetrado encarava apenas um ponto na imensidão do nada, ponto este que não era eu. Seus lábios semicerrados impediam o veneno irreversível de escorrer entre os mesmos, contaminando o chão que parecia ter sido reconstruído com benitoíte só para ela passar. Carmélia, tão aprazível quanto a flor. Seu sorriso corruptível, seu andar avassalador. E por onde ela passa, muitos há de conquistar, com seu jeito tão sereno, com seu dom de arrepelar. Segurando o arcaico papel, manchado de lágrimas e com aroma de fel, eu suspiro descontente, observando sua letra tão iludente, com suas palavras alicientes. E as lágrimas não libertas, que tentaram descer inutilmente pelo meu rosto, são engolidas novamente, ferindo comovedoramente o meu coração. E eu te observo ir embora, tão majestosa, tão melindrosa, caminhando para o final da rua, deixando para trás seu aroma de bromélia. E no papel me resta suas palavras tão ilusórias:

"Para sempre sua,

Carmélia."

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Oração.

Bom Deus, não sei muito bem como fazer isso. O senhor sabe que não sou muito cristã, e que minha fé pode ser até duvidável. Mas me disseram que nos momentos de desespero, o nosso pai nos dará o conforto que precisamos. Sabe, tem alguma coisa aqui dentro, uma angústia, que machuca, arranha o coração. Você pode ver daí de cima, senhor? Eu sorrio, me divirto, me afogo em um copo de cachaça, escuto músicas altas para espantar meus demônios, mas nada me faz esquecer. Porque isso? Você não está vendo que me faz mal, meu Deus? Olha, feche os olhos e escute. Está vendo esse som? É a minha dor gargalhando. Eu só queria conseguir empurrar essa decepção por goela abaixo, mas ela sempre volta. Só queria pegar essa desilusão, colocá-la em cima de velhas madeiras e atear fogo. Quem sabe o calor da fogueira confortasse o meu coração, descongelando-o. Você me entende? As lágrimas não descem com facilidade, e quando isso acontece, parece que rasgam minha pele sem a menor compaixão. Porque isso está acontecendo comigo? Só queria saber o que é sorrir verdadeiramente de novo. O que é respirar fundo, sem sentir o ar ser comprimido em meus pulmões. Você poderia me ajudar? Não estou pedindo muito, senhor. Não me interesso por dinheiro, riqueza, eu só quero paz. Só isso, a única coisa que lhe peço. Não quero um novo amor. Se o antigo já me machuca sem dó nem piedade, imagina um novo? Olha Deus, sei que você tem muitas coisas com o que se preocupar ainda, coisas bem mais urgentes, mas pense em mim e tente me ajudar. Não esqueça de mim. Aguardo por melhoras. Amém.