quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Manto Tolo.

- Aqui também não tem lua. Há um manto acinzentado que cobre o céu. Ele é frio, meio ríspido. Deve ser ciumento. Escondeu todas as luas, as estrelas. As danças. Só restou vento. E frio.

- Aqui tem uma pequena mancha cinza em um canto. Ele não deve querer a lua com a gente... Quer o brilho dela só para si.

- Manto tolo.

- Manto tolo. Ele não deveria sentir ciúmes, né? Nunca uma coisa é totalmente nossa. Pertence a nós e ao mundo.

- Mas sabe que não é a primeira vez que isso acontece. Eu me lembro que uma vez o orvalho contou pra laranjeira que contou pro parapeito que contou pra janela que contou pra mim que de vez em quando o Decripto é assim mesmo. Diz que ele "é de lua", tem dia que fica deprimido que só vendo. Todo mundo agrada, mas ninguém alegra.

- Ele então deveria procurar a alegria em si mesmo, ao invés de procurar nos outros. Quem sabe dentro dele, perdido em uma de suas veias está ela? A coruja que fica em frente à minha casa, pousada na arcaica árvore poderia contar ao vento. Soube que ele tudo leva e tudo traz. Quem sabe ele poderia contar-lhe isso?

- Então faça assim. Ascenda uma vela, e leve três brevidades pra coruja. Vovó diz que quando você quer um favor do bicho-que-tudo-sabe, tem de primeiro agradar. Mas tome cuidado com o que dirá, pois ela roga desesperadamente com seu olho de pedido quente que ensandece até não querer mais. E mande as estrelas dançarem aquela ciranda de quarta-feira, vai que dá uma alegrada do Velho Céu.

- Uma vela com aroma de canela ou de flor-de-cerejeira? Ou ela aceita qualquer? Escolherei flor-de-cerejeira, pois vem da árvore nobre. Quem sabe assim seduz a pobre coruja, que continua parada na árvore? As estrelas estão escondidas. Acho que elas não gostam do manto acinzentado. Oh, elas são ciumentas! É isso! Sentem ciúme, pois ele lhes roubou o brilho da lua. O brilho da lua e a boa prosa com o coelho, que mora dentro dela! Ouvi dizer que ele é apaixonado pela mesma... Será que foi por isso que o manto a escondeu em seus braços tênues?

- Eu acho que pode até ser. Não sei, a Mãe tem se mostrado diferente comigo. Ela não está tão mais calorosa, teu peito de queijo branco tem se tostado, tua alma de parafina tem se derretido. Eu não sei se ela quer me confundir com aquele coelho, só sei que me sinto um pouco misturado. E o vento, então? Vamos falar a verdade que ele não tem ajudado em nada. Vovó me pediu pra ferver canela, coentro e folha de limoeiro lá na fogueira do quintal pra agradecer as almas que o padecem, mas não sei, não adiantou. Continua tudo parado: o relógio bate certo, a noite cai lenta, o pássaro cala cedo. Não gosto disso, eu queria movimento.

- O vento deveria nos ajudar. O que será que acontece com ele? Acho que sofre do triste pesar da solidão. Sempre o vejo por aí, tão sozinho, levando recados aos olhares curiosos dos passarinhos, que o acompanham de longe. Mas ele permanece só. Não deu certo? Vamos adicionar flor-de-cerejeira. Só uma pitada, bem pequena, dizem que deixa a alma mais serena e alivia o coração. Quem sabe assim, aumenta o movimento desses dias tão desalentos, aumenta a emoção. Quem sabe assim o vento volte a dançar uma valsa, seja no chão ou em cima de uma balsa, e se anime para nos ajudar?

- E se o segredo for mesmo a flor-de-cerejeira, que sua ternura faça da Lua a Mãe Fiel que nos cobre de luz e da sinfonia do silêncio. Que faça do vento a brisa cigana que abrasa os sentimentos que carrega por onde passa. Que faça da coruja a velha sábia da conversa fiada. Que faça do orvalho, do parapeito, e da laranjeira as alcoviteiras que tecem os fios duradouros do cimento popular. Que faça de nós simples admiradores secretos do espetáculo da vida que se faz presente a cada terço de segundo.


G’ Stresser e Mayara Marques.

(aprazivelirreprochidez.blogspot.com)

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